O pai e eu
Caminhávamos.
(Uma semana antes, no dia dos pais, enterráramos a companheira dele. Infarto fulminante, não sofreu. Sofríamos nós. Menos mal: os vivos sofrem sempre; ao menos os que morrem, então, não sejam obrigados a mais que esse extremo: cessar. E nós?)
E nós?:
Caminhávamos.
Eu fora passar o fim de semana com ele, para cuidar do homem de quem eu cuidara tão poucas vezes, sempre na morte. Inverter os papeis era um esforço para ambos. Não sei dizer se um dia estaria preparado para ter o filho que não quero, o filho que vim a ser quando ele tinha a idade que tenho hoje, e para o qual também não sei dizer se ele estava preparado; mas deve ser ainda mais difícil estar pronto para ser cuidado pelo filho; e para o filho, cuidar do pai. Ele acordara antes de mim e arrumara a mesa. Oferecia-me frutas e ovos e leite e queijo enquanto eu comia — um pouco desconcertado, porque estrangeiro naquela cozinha, e tendo imaginado o inverso: adiantar-me a ele, às suas horas roxas de silêncio e orvalho, e receber seus pés despertos com mãos de café e papaia.
Mas tudo bem. Tínhamos — temos — tempo para aprender: eu a cuidar, ele a ser cuidado. (Temos?) Então, após comer, saíramos pelos caminhos de terra que contornam o sítio.
Caminhávamos, pois. Deixava-o ir à frente, assim poderíamos conversar — sem máscaras — com menos risco para sua idade inversa à minha: setenta e três, completados dois meses depois de eu fazer trinta e sete. Eu buscava aprender o zelo, pelas beiradas. Talvez assim fosse mais fácil, tanto para mim quanto para ele, cada qual se acostumando a esses novos tênis metafóricos com que pisar o chão do tempo.
Às tantas, encontramos um seu conhecido, refazendo a cerca à frente de uma fileira de árvores iguais. Perguntei de que eram. Cupuaçu. Sou tarado em cupuaçu. Não havia nenhuma fruta à vista, não era época. Ainda assim (quem sabe justamente por isso), perguntei se poderia pegar uma, caso encontrasse. Autorização dada, pus-me a vasculhar as copas, enquanto retomávamos a caminhada. Encontrei.
Meti-me entre o arame frouxo da cerca antiga e fui até o cupuaçuzeiro. Trepei, um tanto a medo: aquela árvore um tanto frágil balançava sob os quase oitenta e cinco quilos de meus quase quarenta anos e não muita experiência subindo em pés de fruta. Mas consegui. Alcancei a bolota amarronzada, joguei-a ao chão e desci, um pouco sujo, claro, mas ileso. Quando apanhei o cupuaçu no chão para levá-lo comigo, confesso: já não pensava em cuidar do pai. Eu tinha agora uns sete, oito anos, querendo correr até ele, feliz, e dizer olha, pai! você viu? eu consegui! subi na árvore e peguei! Para que ele sorrisse também, orgulhoso de mim.
Pensando agora, talvez, talvez eu possa acreditar que, de certa forma, esse retorno ao tempo fosse estratégico: eu recuava e revivia uma espécie de sentimento em que deixava de ser tutelado e exibia minha autonomia, meus conseguimentos, a vastidão das minhas capacidades resumida em colher fruta do pé, para que, devagarzinho, o pai soubesse que no futuro, sim, eu seria capaz de cuidar dele, embora talvez o tempo exigisse que eu aprendesse agora, já. Talvez.
Mas quando voltei para junto da cerca, ele não estava mais lá. A primeira reação foi me desapontar: então o pai não me tinha esperado, para ver meu sucesso. Mas tudo bem: assim me dava a chance de uma corridinha até alcançá-lo, enquanto ele mesmo não esfriava o corpo, me aguardando. Corri. Nove, dez anos, cupuaçu na mão, sorriso na cara, ávido por encontrá-lo, mostrar-lhe a fruta, colher dele um sorriso como colhera o cupuaçu.
Ao fim da estrada, uma porteira, e nada do pai. Estranhei. Estudei: não parecia ter lugar ali por onde ele pudesse ter passado. Todo modo chamei alto: Pai! Nada. Romeu! Nada. Estranho. Melhor voltar. Corri de volta. A meio caminho, lá vinha ele: Seu filho da puta, você saiu correndo e me largou lá! Eu gosto quando o pai me xinga assim, com carinho. Enquanto eu pegava o cupuaçu, ele tinha voltado para junto do amigo e me esperava batendo papo.
Eu já não tinha certeza da idade que sentia, oito, dez, trinta e sete, mas já não era o filho orgulhoso aprendendo a se virar sozinho e mostrando ao pai: ensaio para cuidar dele lá na frente, ali na curva do caminho, agora mesmo. Era, antes, o filho meio afobado querendo colher as frutas antes do tempo, enquanto o pai aguarda, vigia, dá bronca. Cuida.
Na confusão dos dias velozes, na preparação tateante para o futuro que sempre chega mais cedo do que supomos, antes de estarmos realmente preparados, nos passos trocados e desastrados de nós dois que nunca fomos muito bons em dançar acompanhados (para desânimo da mãe), eu recuara demais, apenas por um cupuaçu?
Mas tudo bem. Ainda temos tempo para aprender a inverter a condução dessa dança. E sabemos que nunca estaremos totalmente preparados. Para nada.
Caminhamos de volta, sob o sol, cuidando (talvez) um do outro.