Duas noites e um talvez
É noite, é sexta-feira e talvez por acaso, talvez por acaso não, é dia dos namorados, e você (re)encontra alguém e ora diabos, é dia dos namorados e vocês passam o show juntos agarrando-se e lambendo-se e conhecendo-se e entregando-se como talvez nunca antes um ao outro, e esse dar-se e esse descobrir-se também são um deixar-se levar ao mundo, ao tempo, a estar vivo, ora diabos!
E vocês caminham de volta, findo o show, como quem volta e ao mesmo tempo como quem vai, como quem retorna ao sentido mais terno e mais íntimo e mais antigo de retornar, e como quem vai ao desconhecido com o destemor e a alegria da véspera do amor, porque o amor é um medo infindo e a coragem e a felicidade do amor são disfarces e são ruídos e efeitos colaterais e compensações psíquicas do inconsciente, porque senão o medo imenso, imensurável nos paralisaria e é preciso que o amor mova o mundo.
E caminham pela noite, pelas calçadas e pelas ruas, pela Lapa e por dentro dos sons e entre conversas e entre abraços e afagos e sorrisos e sobem a ladeira que leva à porta.
E no momento da despedida, em frente à entrada do prédio que é tão perto do seu, mas hoje você está romântico e calmo e você já teve aquele corpo nas mãos antes e sabe que terá de novo, não há pressa, e no momento em que as últimas palavras pertencidas à madrugada de junho são ditas você ouve “te amo” e vê o corpo pequeno que entra pela porta e te olha de relance, você sente um espanto sem adjetivos e sem dicionário que traduza e defina com exatidão isso que você, então, só consegue chamar de espanto, embora não seja bem isso nem apenas isso, um medo que é infinito mas ainda é pequenino e suportável diante do amor que ainda não é, e você foi atingido com tanta força que até fica sóbrio por um instante, mas só por um instante, o fôlego volta, o sangue corre de novo, você processa e percebe, como uma lembrança já, no momento em que vê aqueles olhos te olhando de relance, que na verdade o que os lábios disseram foi: tchau.
Apenas: tchau.
Simples, simplesmente, trivial.
Você suspira.
O perigo passou. O amor esteve tão perto, mas fugiu. Todavia, o perigo do amor nunca foge pra longe.
E uma semana depois, com outro corpo nas mãos, porque os corpos são tantos pro seu corpo que tem sede, sede tamanha — ajudai(-me) — e você tem um pescoço nos lábios e um ouvido tão perto, à distância apenas de um mero sussurro, e você percorre a distância, porque a sede é tamanha –– ajudai(-me)! –– e sussurra “o que mais você quer fazer comigo?”, erguendo a cabeça em sorriso e meneio de tigre, e talvez tanto com os olhos quanto com seus próprios ouvidos você escuta a resposta “te amar” e novamente a incompreensão da largura de um silêncio infinito contida num instante, como é infinita toda respiração (guardando toda vida no inspirar e toda morte no expirar), e também dura apenas uma brevidade e novamente o medo e o tesão do medo e do que está por trás do medo até que você volta à órbita do mundo e percebe que a resposta, tão menor, muito menor, foi: “te amarrar”, e você dobra de volta o corpo porque a sede não passa.
E talvez esses espantos que você anda equivocadamente ouvindo sejam uma carência braba, mas talvez seja um amor enorme amedrontado e amedrontador de você por você mesmo, que pra se revelar com mais suavidade esteja escolhendo ser dito pelas bocas de outros, sem nem mesmo isso, sem nem mesmo ser dito de verdade, mas apenas ouvido por você nas vozes dos outros, porque só disfarçado de outra coisa, que muitas vezes também chamamos amor, é que o amor pode se revelar.
Marcos & Henrique
Conheciam-se profundamente, embora ainda tivessem idades em que não se conhece bem nem a si próprio, que dirá outra pessoa: Marcos, vinte e nove recém completados, no auge do que Henrique, vinte e quatro (rá!), dizia ser “a melhor fase do homem: quando o vigor ainda pulsante ganha experiência.”
Eles não eram “eles” há pouco tempo, um nada além de três anos –– o que já é quase não tão pouco, mas ainda não tanto. Há dois, dividiam o apartamento antigo, que testemunhava a construção daquela vida em comum com a sonolência de quem já vira assassinatos e suicídios afetivos e desistira de tentar compreender a humanidade.
Entretanto, entretanto, apesar de todos os entretantos: conheciam-se profundamente.
Marcos levantou-se, os pés descalços, e foi até o quarto no fim do corredor, cuidando pra não esbarrar em nenhuma das pilhas de livros, aguardando resignadas pelo chão que ele instalasse a prateleira comprada há semanas, também ela ao chão, tímida ainda em dar as mãos aos livros. Contornou a cama e diminuiu o volume do som, que fazia vibrar quase imperceptivelmente o tampo da mesinha de cabeceira –– calhou lembrar-se da infância, olhando pro móvel: dos raros momentos de calmaria, quando a mãe o colocava pra dormir e sempre deixava um copo d’água ali ao alcance, na mesinha de cabeceira, como ela dizia, nunca no criado-mudo. Voltou ao escritório.
Henrique não ouviu o volume ser diminuído. Ouviu, sim, a voz de Marcos, contrariada mas ainda carinhosa, roufenha, uma entonação só dele, sempre, sempre: Henrique, abaixa um pouco o Caetano, por favor, estou tentando trabalhar. Mesmo com toda a intimidade, ele sempre usava por favor e obrigado. E todas as outras fórmulas de gentileza. Nas mais pequenas coisas. Costumava dizer que falta de educação, ainda que por pressa, ou pela própria intimidade, ou por qualquer razão, era imperdoável. Gostava de cultivar amabilidades como plantas, com devoção quase religiosa. Além de imperdoável, achava a descortesia mortal: “Quem não diz por favor está a um passo de mandar tomar no cu o outro que só pediu licença. Na rua pode acabar rendendo um tiro. Em casa, um bilhete de despedida”. Henrique fechou a torneira e parou de se banhar por um instante.
Marcos não ouviu o fluxo de água se interromper, o silêncio ao fim das gotas e do zumbido do aquecedor. Ouviu um suspiro e a voz do outro em certa irritação: É rápido, Marcos, você sabe o quanto eu gosto de ouvir música enquanto me apronto, eu já vou sair. O relógio do computador indicava dez e dez, agora dez e onze. Parou de escrever. Acendeu um cigarro.
Henrique não ouviu os passos e a janela de esquadrias velhas e rangentes se abrindo à amendoeira e seus macaquinhos, acostumados ao ruído de alumínio deslizando, olhares e fumaça de cigarro –– Marcos fumava sempre à janela, desde quando morava com os pais e não queria deixar o cheiro enjoativo se impregnar pelo quarto, dando causa a mais brigas, embora fossem cada vez maiores e mais frequentes, mesmo sem motivos, naqueles últimos anos em que ele mais fumou na vida, antes de cada um dos três ir viver sozinho. Henrique o ouviu, com a voz mais alta, todo alerta devido à interrupção do trabalho, dizer — ainda carinhoso, porém de um carinho, uma polidez à beira da condescendência: Mas é um fluxo, Henrique, e o som incomoda, muito, tanto, a concentração de que eu preciso; ainda que seja o Caetano, aliás — anteouvindo em sua mente o argumento seguinte do outro, sobre a suavidade das músicas que escolhia sempre que ele estava concentrado — É o único momento em que eu peço pra não ser perturbado: quando eu tô escrevendo.
Havia em sua voz uma nota levíssima, rarefeita, de algo maior que aborrecimento, um prenúncio de desespero quase, vindo mais de confessar assim em voz alta a escrita e a entrega que ela exige do que propriamente da discussão em torno do volume do som. Mas Henrique não ouviu.
Reabriu a torneira, terminou de se enxaguar e passou a se barbear no vapor do banho, em silêncio. Isto exatamente tudo o que Marcos ouviu: o silêncio do outro, por trás da voz entoando Um Canto de Afoxé para o Bloco, por baixo do barulho do chuveiro e do aquecedor, entremeando feito gás em expansão os ruídos débeis que vinham da rua, aquela rua tranquila de amendoeiras já velhas, que nem mesmo forças pra farfalhar ao vento costumavam ter.
Deixou o cigarro aceso no cinzeiro e foi até o quarto, sem olhar pra dentro quando passou pelo banheiro — a porta aberta pra deixar entrar a música que infelizmente não sabia, em sua natureza de onda, entrar toda ali e se dissolver no vapor d’água, feito se dissolve na areia a onda do mar. Aumentou o volume do som, porém menos do que tinha abaixado antes. O tampo da mesa de cabeceira não vibrava, nem de leve. Voltou ao escritório, fechou a porta.
Mas Henrique só ouviu a voz do outro, irritada porém rendendo-se, carinhosa, sempre carinhosa: Pelo menos se apressa, garoto. Garoto era de fato o termo mais carinhosamente rendido que o namorado usava pra ele. Apressou-se.
Marcos não ouviu o som inexistente daquele apressar-se, sem gavetas batendo ou cabides correndo pelo metal da barra do armário, a roupa já escolhida aguardando em cima da cama. Ouvia apenas a música, que agora, até mais do que antes, prendia-lhe a atenção, pela fresta embaixo da porta, pela fechadura, pelos recessos do cérebro que conhecia cada verso seguinte (Ilê aiê, como você é bonito de se ver), cada entonação de cada palavra (I-i-i-lê aiê, que beleza mais boniiita de se ter), impedindo-o por completo de trabalhar.
Quando pronto, som desligado, antes de sair Henrique abriu a porta do escritório e sorriu pra Marcos, sentado distraído frente ao computador. Um novo cigarro ainda aceso, já quase ao fim, no cinzeiro sobre a mesa, porque não morava mais com os pais e podia vez ou outra deixar a fumaça se espalhar.
Sempre fumava enquanto escrevia. Ou melhor, quando interrompia a escrita. Na maior parte das vezes o motivo era mesmo interrompê-la, apenas: livrar-se brevemente daquela entrega que tanto exigia e tanto o chamava, irresistivelmente. O cigarro largado a meio indicava que as ideias já se reorganizavam quase por completo, a urdidura das palavras no limiar de explodir na próxima frase, a direção a seguir entremostrando-se por trás da fumaça.
Henrique foi até ele com a desinibição dos inconsequentes, deu a volta à cadeira e descansou a cabeça em seu ombro, roçando pescoço e rosto ásperos da barba que crescia sobre a pele do outro com seu próprio pescoço e rosto bem barbeados e frescos da loção de Marcos — que ele sempre “roubava” — enquanto lhe fazia um cafuné divertido no topo da cabeça, baguncinha nos cabelos, rindo, esfregando no outro seu cheiro de banho e roupa nova.
Rearrancado, sentindo Henrique tão próximo, irremediavelmente próximo, irremediavelmente arrancado, Marcos virou-se, rindo também: e o beijou. Beijou aquele cheiro, aquela juventude, aquela pausa, aquele oásis. As mãos ainda mergulhadas nos cabelos do namorado, Henrique suspirou. De carinho, de conforto, de …? Suspirou. Marcos não ouviu o suspiro; ouviu o outro, brincalhão: Desta interrupção você não reclama, né?! Não, nunca reclamava. Beijou-o mais, beijaram-se, mais. O cigarro extinguiu-se no cinzeiro e o relógio do computador marcava agora dez e trinta e oito.
Henrique deixou a porta do escritório aberta, pra que o silêncio do apartamento inundasse todos os espaços. Saiu pela cozinha, de onde podia descer as escadas correndo como gostava. Marcos não ouviu a porta bater. Ouviu: Te amo. Antes mesmo de começar a descer velozmente as escadas, um alarme de carro disparou mas Henrique teve a certeza de ouvir perfeitamente: Também te amo, na voz de Marcos. Sorriu: pensando na volta, no amor de noite, tão sôfrego e tão calmo. Brincariam com gelo, planejou, apenas porque o outro adorava.
Comunheciam-se. Profundamente.
— textos publicados em 01/2021 na Revista Vício Velho