a cena grávida
(a cena:)
(no balcão do bar, ela estende o cartão ao atendente)
— Um guaraná, por favor.
— Débito ou crédito?
— Crédito.
(pausa)
— O que você pediu mesmo?
— Um guaraná.
(outra pausa)
— Débito, né?
Esta é a história. A princípio, ao menos. Um diálogo solto, repassado para leitura ainda pingando seus muitos não-ditos, não-ouvidos, não-sabidos. Quem desejar, pode parar de ler aqui.
Ou vamos descascar, ou rechear, esta cena. E caso nunca saibamos, neste exercício de acasos e imaginação, se chegaremos a nos aproximar de algo que poderia ser chamado A Verdade, tanto melhor: em certos momentos, contextos, passatempos, mais vale o prazer da incerteza.
(Quem desejar, ainda, pode parar de ler no sentido intuitivo e corrente do verbo, mas seguir lendo um seu desnovelo próprio: prazer outro de caminhar no abismo das palavras sem a mão de ninguém)
Digamos que fosse uma noite movimentada naquele bar. Detalhe a mais, apenas um, e das muitas histórias que esta pode ser, algumas esmaecem, enquanto outras brilham com mais intensidade.
A quem rebrilhou mais vividamente o vislumbre de cansaço do rapaz, moído por horas, meses, vidas anotando pedidos, dedos enrugados de lavar tulipas de chope, a mente mal dormida tentando calcular o estoque do bar, porque daqui a pouco o gerente pergunta, um passo à esquerda, por gentileza. Não me digam sobre o rosto que veem, mascarado num sorriso anódino, mas pensem sobre ele. Pensemos. E não esqueçamos, em palmilhando essa vereda, de cultivar algum humor nas histórias dessa história (hoje, por exemplo, o gajo ainda mais cansado e distraído lembrando da suruba em plena terça mesmo, foda-se, que ninguém é de ferro e só se vive uma vez). Se não, periga descambar chatíssima.
Um passo à direita, por sua vez, quem se irritou — só duas informações, porra, guaraná no crédito, não é a fórmula de báskara! — em catarse e solidariedade muito específicas, assim mais espelhadas que transversais, e toma a nova informação, não como um mistério a mais na carne do mundo, mas confirmação de si: ah lá, pior ainda numa noite movimentada, sem desculpa, sem desculpa! Aliás, outro passo, por gentileza, com essa espumância de convicções pontudas. Mais pra lá. Mais. Bem mais.
Já para quem cintilou — quase com volúpia, aposto — a sugestão de tantas outras gentes ao redor, tantas mais histórias a se entrecruzarem, quem desejou se perder (e a suruba? e a suruba?!?), mais do que explicar, um passo à frente: me dá a mão.
(Quem quiser, pode parar de ler aqui. Bom, em qualquer parte, já está percebido, não?)
Porém, e se acordamos para o inverso: um balcão vazio, quase silêncio (o silêncio raramente é mais que um quase). Talvez uma chuva ao fundo, lá fora. Haverá quem romantize, sabemos. Quem se repita. Até quem se arrepie em medo, pressupomos, sem que ninguém saiba bem de quê, ao menos ainda. E haverá também, é certo, sempre há, quem se deleite justamente no que ainda pinga: não dito, não escrito, não sabido. Vazio sim, e daí? — perguntam; e emendam: não responda, é justamente o espanto que interessa.
E se eu disser, a quem ainda me lê, seja de mãos dadas na entrega; seja em passo um pouco atrás, como um acanhamento; ou mesmo numa cautelosa distância desconfiada, mas ainda assim, ainda aqui, comigo, e se a você eu disser que:
(sobre como continua(-r) este conto: cartas à redação)
— Publicado em 08/2020 na Revista Vício Velho.
(créditos da imagem: Cena de Bar, 1938 — Milton Dacosta)