A palavra
Escavo escavo escavo. A palavra: áspero diamante. Quem há de adestrar suas lâminas, afiadas no que (se) diz, (se) esconde, (se) compreende?
A palavra é — talvez primeiramente (nem os etimólogos podem afirmar a cronologia da língua; quanto aos sensos de importância, cada um que sonhe os seus) — uma tentativa de representar algo. De acordo? Pois vamos complexificar: segundo Clarice, este algo já parte de um destino: saber que vai fracassar; e portanto é também (sempre e ainda e de novo: de partida, na simultaneidade circular de um paradoxo temporal) o que sobra na volta deste inalcance. Minha memória e minhas palavras não são confiáveis (nunca confie num escritor), mas salvo engano o raciocínio da bruxa não se refere propriamente a esta unidade singular, a palavra — mas à linguagem como um todo, como sistema. Não importa, compactemos o pasmo clariceano: palavra, então, mais precisamente do que a representação de alguma coisa, ou tentativa de, é o que sobra do fracasso em alcançar a coisa em si. Nomear é construir com escombros.
Porém a palavra também é algo em si. Mesmo imperfeita — talvez, em parte, justo por esta sina de ser um não conseguir — ela é: inteira ela. Explico(-me), mais ou menos: cada palavra tem sua materialidade própria, gráfica e/ou (predominantemente) sonora. E como realidade autônoma — troço que é, que existe — tem sua física, química, seus próprios desvarios e infinitos. Veríssimo (o filho) tem um texto maravilhoso sobre a relação entre o som dos nomes e seus significados. Desde termos que ele crê soarem parecidamente com o que representam (princípio básico da onomatopeia, e se bobear, das palavras primeiras), como sílfide — espírito feminino do ar, cujo nome ele acha bem esvoaçante mesmo; até outros mais pra contraditórios, como silfo — o masculino de sílfide, que mestre LFV diz não voar, mas ter “o alcance máximo de uma cuspida, zupt, plof.”
O som da palavra (deixemos a grafia para outro dia, em que o autor acorde meio neoconcreto), dissociado de qualquer sentido previamente combinado. Minha sobrinha, de ano e meio, pronuncia palavras aparentemente pelo puro prazer de ser capaz. Enamorada de conseguir. Por vezes repete o que acabamos de dizer, noutras dispara sons aleatórios até parecidos com português, e que poderiam ser tomados por uma língua própria, entretanto tenho quase certeza que não querem dizer nada, e a pequena curupira sabe. Ela mesma não quer dizer nada, neste sentido da intenção de um significado inteligível. O tesão é dizer. Articular os sons, treinar as bilabiais, brincar de entrar nesse reino que desconfia ser mais interessante do que apenas chorar e sorrir. Como quem entende: em breve, esta habilidade vai-lhe ser muito útil, então melhor ir treinando. Por enquanto, brinca. Será? Isto depreendo eu, afinal. Sílabas autóctones? Onde se finca o entendimento mínimo do que se chama linguagem?
Entre a representação e a autonomia, a palavra se faz fantasma. Mensageira de mundos, o do real que se aponta e o do real de/em si mesma, feito estrutura de hélice dupla: um DNA comunicacional. Claro que existem modos de comunicação anteriores, deixem-me com minha metáfora. A palavra que diz um algo fora de si — ou melhor, tenta, fracassa, e assim na verdade diz algo diferente, sombra e destroço do que pretendia dizer originalmente; e ao mesmo tempo diz (ou é capaz de dizer, se soubermos e quisermos escutar), o algo que ela mesma é, como se toda palavra fosse grito, onomatopeia, a transmitir não (apenas) sua significação desejada, denotativa, mas também seu existir, simplesmente. Nem toda comunicação é racional.
E por trás do por trás, no menor intervalo entre, entranhando-se, germinando, cruzando variantes, sementes crioulas, empurrando & rompendo seus limites sonoros e significantes, comendo os sons e baralhando os nomes, explodindo pra depois costurar os cacos em flores que desafiam a gravidade, a gramática, a sintaxe e nossa própria noção de flor, flores que não parecem flor sob nenhum ângulo e no entanto temos a inequívoca certeza de o serem, e nos extasiamos porque são, isso que Manoel de Barros chamou de “a loucura das palavras”: a poesia. “em poesia que é voz de poeta (e “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”), que é a voz de fazer / nascimentos — / o verbo tem que pegar delírio”.
Leio um poeta que desconhecia. Em dado poema, a estrofe: os negros os mexicanos / os amarelos / audimos um passado ainda vivo / um ritmo intenso / de jardins. Audimos. O que você ouve (/lê)?
(Escavo escavo escavo. A palavra: áspero diamante. Quem há de adestrar suas lâminas, afiadas no que diz, esconde, compreende?)