des-modos

Uma leitura de "Íntimo Desabrigo", de Tarso de Melo (Dobra Editorial e Alpharrabio Edições, 2017).

des-modos

 

“deve-se lembrar que tudo depende da sabedoria do intérprete. Quando este se abeira respeitoso da densidade do objeto estético, reconhecendo que a sua teoria, por mais científica e rigorosa que pareça, não vai ´explicá-lo´ uma vez por todas, mas apenas tentará compreender alguns dos seus significados e dos seus processos de expressão, o risco de determinismo será esconjurado desde o primeiro olhar do analista.”

(Alfredo Bosi — Sobre Alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões, in Leitura de Poesia)

 

 

Em nota ao fim de Íntimo Desabrigo (Dobra Editorial e Alpharrabio Edições, 2017), Tarso de Melo informa que muitos dos poemas foram escritos “no meio do redemoinho, no lugar e na hora em que foi possível nascer. Talvez por isso o livro tenha (…) tantas manchas do tempo surrado de que é fruto e sintoma.” Mesmo após três (tumultuadíssimos) anos de sua publicação, a obra segue com força(s) impressionante(s).

Desde o começo, marca-se nos poemas uma presença constante do desejo, a qual tende a se manifestar reiteradamente no âmbito da recusa, do desfazimento: o poeta quer desconstruir o (mundo) que vê, por reconhecer nele a barbárie galopante. Poucos hão de discordar que tal barbárie só venha piorando…

Atravessam o livro formulações desejantes (queria, por favor, dai-me, procuro, sonho, consiga, peço) e formulações de negação (não, não sei, esqueça, não faz sentido, nunca, e — em especial — o uso intenso do prefixo des: desfizesse, desprezo, desabito-me, desatenção, desmanche, Deseducação). Por vezes somam-se: quando o des-alguma coisa é o próprio modo de querer (“um deus que desfizesse / talvez tivesse hoje a minha fé”); por outras se opõem: quando se recusa um des-alguma coisa que parece desagregar e desumanizar o mundo cada vez mais (“Não suporto as fotos em que Veronica desaparece”).

E agora, José? Diante das visões do horror (aliás, “foto” é outro signo recorrente no livro), como deve a poesia se portar? Aqui o projeto poético do livro se aprofunda e se complexifica. Para além do campo temático e de nomeação da realidade a se descosturar, temos a própria obra se fragmentando, articulando ampla gama de recursos, não como puro espelho do mundo, mas celeiro de caminhos. Diversamente a livros cuja força reside na solidez de um projeto uniforme, aqui a variabilidade predomina: alguns poemas inteiros em minúsculas, outros respeitando maiúsculas; alguns com pontuação normativa, outros sem (e até um deles clariceanamente findo numa vírgula, após estrofes terminadas com ponto final); poemas em prosa; poemas em tons, metros, ritmos, esquemas rímicos e tamanhos variados; as inventividades dos “poemas incidentais”; e por fim o (anti)poema que encerra o livro, rearranjando em versos uma sentença judicial, aplicando ao âmbito jurídico um tipo de procedimento já visto, por exemplo, no campo do cotidiano (Kenneth Goldsmith/Marília Garcia/Leonardo Gandolfi) e do político (Roy Frankel).

Tal variedade, pelas recorrências que a permeiam, revela não se tratar o conjunto de algum tipo de apanhado aleatório (como enganosamente se poderia pensar em leitura apressada da citada nota ao fim do volume), mas de um projeto (bem) pensado e (bem) amarrado de multiplicidades a se tecerem “no meio do redemoinho”, buscando de algum modo apontarem como sair do furacão.

Isto porque as multiplicidades desdobram significações diversas: além do mencionado espelhamento da realidade desagregada, é também um reconhecimento do poeta de não possuir resposta única à pergunta que previamente articulamos (“como deve a poesia se portar?” — “Não Sei”, responde o título da 1a parte do livro) e, ao mesmo tempo, indicação de que a melhor resposta pode ser a convivência de respostas, de possibilidades, de modos.

Este último aspecto desdobra-se ainda mais, na medida em que estabelece uma relação de mãos duplas/múltiplas entre o mundo e a poesia, corporificada na linguagem. A pluralidade, acolhedora, abraça a diversidade não apenas como um não-sei, mas também como um talvez-desses-jeitos-consigamos que a poesia torne a dar conta do mundo, no sentido que ultrapassa o de retratar o real, na direção de incidir sobre ele. Ao desdobramento da pergunta: “como a poesia deve se portar para ser também uma arma contra a barbárie (em vez de apenas expô-la)?”, os recursos manejados por Melo, além de exporem os efeitos causados em si/nós pela vida[1] e pela própria poesia[2], constroem efeitos que a poesia pode causar sobre a própria linguagem e sobre o mundo. Afinal, a linguagem é ferramenta de ação sobre a realidade.

Assim, o autor amplia o ferramental poético disponível para si, para seus contemporâneos e para o futuro, através deste fragmentar e re-unir fragmentaridades[3], fortalecendo as potências diversas da poesia brasileira. Não através de uma experimentação radical da linguagem, propriamente, mas da soma de variadas experimentações, sem abrir mão de instrumentos há muito familiares, usados com grande habilidade — como a sonoridade posta em alto relevo por assonâncias, aliterações e rimas internas.

Vale registrar como certas imagens e dicotomias percorrem o livro enriquecendo esses processos, pela força simbólica que carregam, como as reiterações a fogo e água, signos de transformação que podem tanto destruir como fazer renascer; ou choro e sorriso, que remetem a ciclos de perda e refortalecimento. Imagens do que fere, menções a diversos tipos de arma, evocando tanto a barbárie em si quanto os desagregares (do poeta, de nós, da linguagem), assim como sonho, também abundam.

E, feito sombra por trás das páginas, uma ideia de inalcance[4] entrelaçada a tudo que referimos: inalcance em desfazer as atrocidades (“como um aviso de que 516 anos foram pouco. Eles querem mais”) ou se evadir delas, assumindo integralmente, pois, seu estar no mundo; em saber as respostas (“e não sabemos o que fazer com as mortes de amanhã”), sem nem por isso se furtar a buscá-las; em fazer da poesia instrumento de maior efetividade contra a selvageria (“Uma palavra a mais não dirá nada”), mas ainda assim empunhando suas tentativas. Em contraponto, temos outra sombra, mais cálida, entranhada nas páginas, latejando como também um caminho/resposta, dos mais importantes: o afeto[5].

Contudo, embora reconheçamos a presença deste afeto, espalhando-se como bálsamo, o tom da obra (e sua maior força) é mais de espinhos que flores, condensando-se em alguns momentos- síntese do livro, como os poemas Shodô (“e quando rasgamos o papel não rasgamos o que as palavras já fizeram conosco | e quando sujamos o papel com o que nos suja não há mais retorno”) e Inóspitos (“é preciso / exercitar / e desadestrar / continuamente / os ouvidos / para sacar / dos versos / sua sinfonia / insólita / nada óbvia / de mil vozes / discordes”), ou o trecho de Gomapseumnida abaixo, tanto em seu desamparo explícito como em sua obstinação de seguir apesar da perplexidade, íntimo desabrigo no qual talvez nos encontremos todos que comungamos com Melo de um mínimo de sensibilidade, indignação e pasmo:

 

“… e você segue

 

poeta perdido num lugar

em que todas suas palavras

não servem para nada

 

você segue, com a língua nua

indefesa, vulnerável

soterrada sua pretensão

de saber dizer tudo”

 

___________________________________

[1] p. ex. os poemas “A foto”, “Shodô” e “Barras”.

[2] p. ex. os poemas “Cadernetas”, “Canto”, “Estilhaços” e “Desajustes”.

[3] p. ex. os poemas “Nota para quando eu for um sábio chinês de um século distante”, “Oração” e “Feitio de oração”.

[4] p. ex. os poemas “Onde”, “Fuga” e “Convenção”.

[5] p. ex. os poemas “Companheiro”, “Maria”, “Beliche” e “Legendas para fotos que não há” e as dedicatórias singelas espalhadas pelo livro.

 

— ensaio crítico publicado em 02/2021 na Revista Vício Velho

Livros

lagarta chã

Daí a brisa forte e sadia que vem deste novo livro de Thássio Ferreira, muito felizmente chamado lagarta chã. Algo que responde ao mundo, mas anseia o que não se contenta na resposta – antes convoca, aponta, desdobra.

O que temos aqui é, como nunca deixará de ser necessário, um encantamento múltiplo com o ponto mais chão, a coisa mais chã: das turbinas às lagartas, dos mucos às galáxias, passando pelas casas, as plantas, os poetas, os corpos, as parafernálias que fazem uma vida, muitas vidas.

(Guilherme Gontijo Flores)

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Nunca estivemos no Kansas

Vinte e dois contos que transitam por diversos cenários, relações humanas e estruturas narrativas, construindo uma cartografia de arestas e descaminhos, desde um idílio qualquer onde nunca estivemos — individual e coletivamente — até o presente e além.

Parte dos contos reunidos angariou prêmios como Off-Flip (2019) e Prêmio Cidade de Manaus (2020), foi finalista do Prêmio Sesc (2017) e publicada em veículos como Jornal Rascunho, Revista Garupa e Vício Velho.

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agora (depois)

Em seu terceiro livro, Thássio Ferreira desnovela a linha do tempo de uma história de amor, de trás para frente, em 52 poemas organizados em duas partes: um “agora (depois)” instalado com a separação; e o “agora” anterior, do início do relacionamento até sua crise. Dividindo esses dois tempos, um retrato em prosa do momento fatal em que o barco se desamarra do cais.

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Itinerários

Itinerários, de Thássio Ferreira, vencedor do I Concurso Literário Editora UFPR, em sua linguagem agradável, técnica refinada no uso de rimas internas e externas, ritmos cadenciados, ecos verbais e temáticos, bem como suas aliterações e assonâncias sutis, promovem uma poesia impactante que envolve e encanta.

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pequenas pulsações poéticas

o poema (ainda) pulsa. por baixo, por dentro, por trás, por sobre, por nós, por vós, por elas, por tudo. e é preciso que pulse, e que possamos pulsá-lo(s) na plenitude de suas potências.

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