manual para cachoeiras
acostumar os pés
palmilhar as pedras
com cuidado
muito cuidado
atentar para aranhas
(acima de tudo evitar
escorregar e bater a cabeça:
é muito inconveniente
morrer no rolê)
entrar de frente
recebendo a peito
rosto e boca abertos
as águas geladas
e só então te virares:
deixar a correnteza
lavar da tua pele
das tuas mãos
o amor extinto
que trazes ainda
entranhado em
tuas ranhuras
feito sangue seco
(nós, que amamos
demais
sempre trazemos
sangue seco
–– além do fresco ––
nas mãos)
* publicado no livro agora (depois)
um poema no antropoceno
essas nuvens moles
sobre o mar de outono
(ou (já) será inverno
no calendário em fuga
do antropoceno?)
da cidade que habito
querem chover, segundo
deus me disse
(em silêncio)
mas algum segredo
que nem deus conhece
(só o poema
sabe, mas não
me diz)
torna a água em pó
cobrindo as gaivotas
que se esbatem à praia
da cinza malsã
que sangra o tempo
enquanto agoniza
(vai morrendo vai morrendo)
frente ao nosso espanto.
mas agora é manhã
(sem que eu tenha contado
quantas madrugadas cabem
nos espaços em branco
que o poema ordena)
e o sol do equinócio
(o tempo restaurado)
com sua força estúpida
obstinada
feito sêmen rubro
a fecundar calores
no ventre aflito
dos oceanos
vem redimir o mundo
(suas cidades, seus frutos podres
suas guerras tolas, sua mesquinhez
enorme)
por mais um dia.
cantemos
cantemos todos!
escapamos de novo
sem juízo ou mérito
(meros parvos
sobre a carne da terra)
da hora fatal
que feito nuvens de sal
a queimar o céu
até o rés do chão
virá um dia
(e nem deus nem eu
nem o poema
sabemos qual)
calar para sempre
as gargantas dos homens.
hoje não.
* publicado no livro Itinerários
poemas inéditos:
Voyeur
(para Arthur Scovino)
o meu olhar
⠀⠀⠀⠀nu
que olha
os olhares
que eles
trocam
tocam
tangem
(tesão)
enquanto
o sol
queima
ângulos
volumes
mucosas
que em comum
(no mundano
comum dos dias)
não se olham
meu olhar
nu
nu
nu
sem pudores
nem medos
é também
o olhar teu
dele (deles)
do sol e
de deus
(se ele existisse
para além da
pura nudez
do mundo
e dos seres)
o poema calmo
a inquietude réptil
que eclode sem som
de seu ovo invisível
nas horas sísificas
desenhadas a esmo
pelos dedos em lâmina
da madrugada daqui
essa inquietude estéril
feita de sede
fome sem nome
e mudez (de gestos)
devora as palavras
a voz os cabelos
os traçados
o sangue
os telhados as mesas
do poema calmo
(frágil
desenhado a flauta)
puro desejo de entrega
sem culpa e sem medo
que afinal não escrevo
— Publicados na Revista Aboio, com editoria de Leopoldo Cavalcante.