Mundinho

Mundinho enamorou-se da selva. Apesar dos avisos, dos interditos, das tentativas do Zé Caboclo. Zé, pescador cheio de brios, não queria o filho no rio, nem nos lagos, nas beias, nem dentro da mata. Mundinho era pra contrariar o apelido: ganhar o mundão. Apanhava de cipó pra ir à escola, não era pra ficar de pavulagem com os moleques, pelas ruas de tijolos, nos barrancos do Envira. A mãe obedecia ao marido, ralhando pra ele tomar jeito, estudar, estudar, não fosse virar homem sem ler nem escrever feito ela e o Zé.

Mundinho

para Marcio e dona Dica

 

      — Publicado no Rascunho n° 248.

 

Mundinho enamorou-se da selva. Apesar dos avisos, dos interditos, das tentativas do Zé Caboclo. Zé, pescador cheio de brios, não queria o filho no rio, nem nos lagos, nas beias, nem dentro da mata. Mundinho era pra contrariar o apelido: ganhar o mundão. Apanhava de cipó pra ir à escola, não era pra ficar de pavulagem com os moleques, pelas ruas de tijolos, nos barrancos do Envira. A mãe obedecia ao marido, ralhando pra ele tomar jeito, estudar, estudar, não fosse virar homem sem ler nem escrever feito ela e o Zé.

Mas quando o pai subia o rio no batelão da colônia, pra ficar duas, três semanas, na época da despesca do pirarucu, Mundinho fascinava. Os peixes outros eram peixes outros, de sempre: mandi, surubim, mocinha, traíra, piau, bodó. Mas o pirarucu era rei, e as histórias que os meninos e os mais velhos contavam incandesciam no dentro de Mundinho feito ele nem sabia quê.

Gostava mais das narrações dos garotos mesmo, em tom de aventura, alvoroço de quebra-cabeça, cada um desenhando um pedaço, trepando os causos: da paisagem beira d’água parecendo às vezes tão igual que era como se o barco estivesse parado, ou dando voltas em círculo pelas tantas curvas do rio; dos lagos em ferradura que o Envira formava quando a força da enxurrada mexia no curso do leito; das buiadas daquele touro aquático (Mundinho não conhecia baleia), quando subia pra respirar, tão imenso a não conseguir, embaixo d’água, todo o oxigênio de que precisava; as arpoadas, os golpes em cada lado da cabeça quando o peixe era puxado pro barco; e a sangria, o corte das mantas, a salga. O escuro das noites. Era assim que preenchia as lacunas do que lhe contavam: com o escuro. Tão fascinante pra ele quanto as imagens. Mundinho queria as brenhas, os breus, o que lhe diziam, o que imaginava e talvez mais que tudo: o desconhecido. Que se danasse o mundão lá fora, de postes de luz e tudo que a tevê mostrava. Queria a fundura do espanto.

Daí veio o moço de óculos, junto com o moço do governo. Naquele dia, quando o Zé chegou em casa, avisou:

— Amanhã tu vem mais eu na colônia. Vai ter conversa com o homem da secretaria e outro que veio de Brasília, foi uns pessoal lá de fora que mandou ele, pra organizar a despesca e arrumar preço melhor pro pirarucu. Eu sei que tu gosta disso, quer subir o rio, mas não é assim não. Tu vai é pra ouvir o moço, aprender alguma coisa, ver como é que é quando a pessoa ganha o mundo lá fora e sabe falar.

Mundinho concordou com a cabeça, tentando disfarçar a agitação.

No dia seguinte o homem de Brasília falou menos do que Zé esperava, só no comecinho, e depois ficou escutando os pescadores, fazendo uma e outra pergunta. O garoto se perdia nas falas tantas, nem tudo lhe interessava, ou entendia: o preço do quilo de cada peixe, se na cidade vendiam apenas no mercado ou pra quem vinha na beira do porto, se a colônia tinha regimento. Regi o quê??

Mas uma coisa ele entendeu, e quase pegou nas mãos feito uma pedra muito preciosa: dali quatro dias um grupo subiria o Envira pra mostrar pro moço de óculos como era a despesca. Vinte dias. Uma chance. Se o pai queria que ele prestasse atenção no moço, e se ele mesmo queria, porque lhe atraía não o jeito (do) forasteiro de falar, mas aquela ânsia, por trás das lentes, desejando conhecer mais fundo as entranhas úmidas das terras de água, então ele haveria de convencer o pai a também ir no batelão.

E convenceu. Com ajuda da mãe, que disse Deixa, Zé, capaz assim o menino tirar logo isso da cabeça.

Zarparam antes do sol despontar por cima das copas das árvores e molhar o rio de reflexos. Mundinho muito do quieto, espichando as vistas pras matas altas, pra lá das margens, boca aberta, sem decifrar o friozinho da barriga naquele calor pe-ga-jo-so. Se enamorando. Quando já noitinha quase, chegaram em Porto Rubim. Dormiram.

Dali pra diante, dias parecidos: levantar cedo, juntar as coisas, rumar pro lago, pescar de arpão ou malhadeira, sangrar, salgar, rumar de volta ou até a próxima comunidade ribeirinha, rio acima. O Lago Horácio. O Santa Júlia. Mucuripe Velho e Mucuripe Novo. Orelha, Pedro Paiva, Sabiaguaba. No começo ele prestava muita atenção nos gestos dos mais velhos, alongando e rasgando o tempo, como o moço de fora também prestava. Os homens espalhados em canoas nos lagos maiores, pra contar a quantidade de pirarucus conforme as buiadas, o moço perguntando de que tamanho era e anotando: tantos adultos, tantos bodecos. Os peixes trazidos ao barco pelas mãos tesas, veias saltadas, a pancada em cada lado da cabeça, um corte profundo logo atrás, seccionando a medula, pra imobilizar o bicho, e a sangria: o terçado correndo entre as guelras e o ventre, por onde o sangue escoa mais rápido. Lavar o corpo de escamas avermelhadas, em seu mais de metro e muitos quilos. Depois, as folhas de bananeira ou palmeira brava no chão, o peixe estendido, o corte das mantas: uma linha desde a cabeça até a nadadeira caudal, e tiram-se as peitorais, anal e dorsal, depois as escamas da cauda até a cabeça, pra então cortarem longitudinalmente os dois nacos enormes de carne macia, gordurosa, prontos pra serem salgados — após se retirarem as vísceras. O sal traçado, mistura de grosso e fino, esfregado sobre as mantas, empilhadas a quase um metro numa caixa ventilada por cima, sem drenagem, acumulando a água liberada e submergindo as carnes na própria salmoura.

Porém, com o passar dos sóis, das águas, das noites, Mundinho ia se desinteressando daquela repetição de atos. Que eram ainda como um arranhão na superfície da floresta: chegar, pescar, partir, rumando cada vez mais na direção da volta: a cidade. Agora que podia ver e montar por si próprio as peças do quebra-cabeça, interessava-se cada vez mais pelas lacunas. Pelos detrás. Olhava pra onde ninguém olhava, acalentando dentro de si um carinho que já começava a entender mas ao mesmo tempo ainda não, muito confuso mas de uma força maior que a do maior rio na maior cheia, pensava. Uma vontade.

O batelão chegou na última comunidade: meia dúzia de casas em palafitas, tão longe que nem nome tinha. Era o “sítio da Dona Dica”, a matriarca em torno da qual passaram a morar filhas com genros, filhos com noras, sobrinhada, netos com bisnetos. O grupo foi se arranjando pelas casas. Zé Caboclo e o filho ficaram na própria Dona Dica, que de cara viu nos olhos de Mundinho um arrepio diferente. Ficou curiando, canto de olho, enquanto a noite caía rápida, enquanto botava janta, enquanto comiam. O garoto percebeu, e esticou o arrepio do olho, como quem dá a mão: Eu quero. Me ajuda.

Depois da janta o Zé chamou o filho pra dormir, mas ele pediu pra ficar vendo o céu, ia depois. Sentou na varanda de ripas, pernas estendidas, encaixando a cabeça nos ombros levantados, as mãos apoiadas no chão com os dedos abertos virados pra trás. Olhava pra frente, fitando o muro de escuridão, levantava a cabeça, descia de volta. Dona Dica se achegou. Coçou as costas no tronco fino que fazia as vezes de batente da porta. Mundinho falou devagar, sem se virar:

— Aqui é tão bonito.

— É sim.

— Eu não quero voltar.

Dona Dica suspirou. Aproximou-se do garoto.

— E a sua mãe?

Mundinho abaixou a cabeça. Mas logo a ergueu de novo, os olhos vidrados mirando a floresta, a voz resoluta:

— Eu gosto daqui. Eu sinto… Como que eu sou daqui, sabe? Pra eu ficar.

Ela sabia. Dentro da noite escura, onde o silêncio murmurava burburinhos da mata, o rio descendo suas águas, rumorejando rumo ao mar, ela sabia. Passou uma estrela cadente. Dona Dica apontou:

— Olha — E quando se apagou no longe, emendou: — Teve uma vez que a minha mãe tava olhando o céu e passou uma estrela daquelas. Ela disse Vai ter guerra. As estrelas criaram rabo. No dia seguinte estourou revolta no seringal. A gente fugiu. Foi assim que eu vim parar aqui.

— Eu vou ficar, dona. Mesmo se não for aqui co’a senhora, eu vou ficar. Na mata.

— Amanhã a gente vê. Bora dormir.

Manhã cedo, café tomado, o pai chamou:

— Bora, Mundinho. Despede da dona.

— Eu vou ficar, pai.

Zé olhou meio torto, de boca aberta. Desentendendo.

— Não pode, filho. Vumbora.

— Não, pai.

Ele nunca vira aquela firmeza, aquela intensidade: tanta vontade e tanta súplica. Virou-se pra Dona Dica: observando da porta, ela encolheu os lábios e arqueou as sobrancelhas, como dissesse Fazer o quê?, e logo em seguida soltou a musculatura do rosto, piscando bem devagar, como se completasse Eu cuido dele. Zé surpreso. Contrariado.

— Que não o quê?! Me obedece, Raimundo! A tua mãe…. Anda!

— Não, pai. Eu sou daqui. Eu quero aqui. Na floresta.

A palavra. Invocada na boca do garoto com tamanha claridade, feito o céu infindo. Com a força do rio que arrasta por baixo, mesmo quando as águas parecem calmas. A floresta e seus mistérios o Zé respeitava. E Mundinho ali, sem tremer voz, corpo, nem pés. Invocando a floresta. Dona Dica deu dois passos pra fora da porta.

— Deixa, Zé. Traz a mãe dele aqui, depois. A gente vê.

Zé desviou os olhos de volta pro menino. De volta pra Dona Dica. De volta pro menino. Alongou o próprio olhar dentro do olhar do filho. E disse:

— Dá um abraço no pai.

Mundinho correu palafitas abaixo. Apertaram-se, bem apertado. Desenlaçaram-se, sem choro.

O batelão partiu. A mãe veio, depois. Vieram mãe e pai, outras vezes. Mas Mundinho nunca mais desceu o rio.

Livros

lagarta chã

Daí a brisa forte e sadia que vem deste novo livro de Thássio Ferreira, muito felizmente chamado lagarta chã. Algo que responde ao mundo, mas anseia o que não se contenta na resposta – antes convoca, aponta, desdobra.

O que temos aqui é, como nunca deixará de ser necessário, um encantamento múltiplo com o ponto mais chão, a coisa mais chã: das turbinas às lagartas, dos mucos às galáxias, passando pelas casas, as plantas, os poetas, os corpos, as parafernálias que fazem uma vida, muitas vidas.

(Guilherme Gontijo Flores)

Leia mais.

Nunca estivemos no Kansas

Vinte e dois contos que transitam por diversos cenários, relações humanas e estruturas narrativas, construindo uma cartografia de arestas e descaminhos, desde um idílio qualquer onde nunca estivemos — individual e coletivamente — até o presente e além.

Parte dos contos reunidos angariou prêmios como Off-Flip (2019) e Prêmio Cidade de Manaus (2020), foi finalista do Prêmio Sesc (2017) e publicada em veículos como Jornal Rascunho, Revista Garupa e Vício Velho.

Leia mais.

agora (depois)

Em seu terceiro livro, Thássio Ferreira desnovela a linha do tempo de uma história de amor, de trás para frente, em 52 poemas organizados em duas partes: um “agora (depois)” instalado com a separação; e o “agora” anterior, do início do relacionamento até sua crise. Dividindo esses dois tempos, um retrato em prosa do momento fatal em que o barco se desamarra do cais.

Leia mais.

Itinerários

Itinerários, de Thássio Ferreira, vencedor do I Concurso Literário Editora UFPR, em sua linguagem agradável, técnica refinada no uso de rimas internas e externas, ritmos cadenciados, ecos verbais e temáticos, bem como suas aliterações e assonâncias sutis, promovem uma poesia impactante que envolve e encanta.

Leia mais.