Alguns poemas em mim que eu não entendo
Sempre tive um forte apego por compreender. O que em literatura, e talvez especialmente em poesia, é um obstáculo a ser vencido. Clarice uma vez disse que não se devia tentar entende-la, mas senti-la. Bandeira, no Itinerário de Pasárgada, escreveu acerca de uma quadrinha publicada em Estrela da Manhã: “É um poema ininteligível nos seus elementos, porque só eu possuo a chave que o explica; mas que a explicação não é necessária para que pessoas dotadas de sensibilidade poética penetrem a intenção essencial dos versos, se prova pelo comentário da nossa grande Cecília Meireles, que os qualificou de ‘pura lágrima’”. Então convido vocês (e eu mesmo) a alguns poemas cuja chave explicativa só eu tenho, e outros cuja chave perdi, sendo hoje um mistério até para mim:
#
teve uma vez
que eu lembro tão bem
que é quase como
tivesse acontecido
#
Indagar exclama (?!)
Sim!?
(Pra mim sim, pois que gosto…)
Não sempre (?!?), que os signos
e as ilimitações do homem
são, até onde sei,
até onde escrevo,
até ontem e até quando (!?!) vejo,
incognoscíveis…
Mas na realidade minha,
que construo e acalento,
na loucura dos sentidos
e dos expressares
que porejo
(e vento e grito?!)
sim, verdade, sim!(?),
os indagares pulam,
enfáticos, em pasmo,
embevecidos?(!)
E os exclamares interrogam,
curioincompreensitransformadores!(?)!
# um espanto
Quebra-se o céu
abre-se o mar
o uno torna-se duo
divide-se o indivisível
sonhos explodem
a realidade rompe-se
da ampulheta alvejada
jorra a areia
o tempo se esvai
levado pelo vento
ventania, tempestade
quem alvejou a ampulheta
e destruiu a ordem?
quem subverteu
e corrompeu
o certo?
# A lua de São Paulo
Sob a lua urbana das catástrofes
espada de mil lâminas, mil faces
impávidas, pacientes, a desenhar exatas
em seus fios os abismos com que, inclemente
rasgará a carne das cidades
dura carne de concreto e erros
sob essa lua grávida
de mil castigos
silenciosa e exangue
como um deus de pranto
dorme São Paulo, babilônia
sem saber da véspera do desastre.
Eu velo.
# poema sem resposta
?
(the answer, my friend, is blowing in the wind)
# Em mim
Em mim
–– o que seja eu ––
todo o incerto aponta
atravessa e cristaliza
sem nem mesmo
estremecer.
A dúvida
em mim
é pedra
a sombra
cega
e os avessos
não desavessam
nunca.
Medra em mim
imune a qualquer vento
e a toda matemática
sem hesitar
sem se importar
com qualquer lógica
minha ou das leis
do mundo como conhecemos
tudo que não pode
não deve
não tem como
e não tem nome.
As impossibilidades
me percorrem e me carregam
— exatas.
Tenho inexistências
de estimação
que me arranham as mãos
e a alma, com garras de destemor
— duras, cruéis.
O inexplicável
— mais do que me cabe —
anda comigo sem descanso
ensinando-me poemas.
# casi sueño
o tempo é teto
de palha
que a formiga
do abraço
roeu
o céu, luz de
navalha
entre o olho
e morfeu
#
a coragem do não
perante a lua
agindo em vou-me
pela ponte
através da noite
em vão
#
ela rodopiava no contratempo
enquanto a pista contrapiava
no rodotempo
ela rodogirava no contrafluxo
enquanto contratacava
o transmovimento
em seu elemento
a luz tremeloucava
sobre seu girocorpo
enquanto o riso frouxo
contranstornava a todos
em transcontentamento!