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antes a cidade se vestia de ruído
e nalgumas dobras do tecido
podíamos apalpar o silêncio
agora a cidade mais silencia
porém nas frestas da mudez coletiva
escorrem intimidades líquidas
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sob esse roxo de maio
ao mesmo tempo nuviado
(como dizia a bisa)
e seu contrário
tentamos sobreviver
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no meio do banho
no meio da pandemia
no meio da punheta
no meio dos trinta
(que já parecem
quarenta)
no meio da náusea
a flor tão frágil
(o poema)
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numa tarde perdida
entre dias esquecidos
e noites repetidas
percebo uma aspereza
nova nos pés:
descamam
parecem os pés da vó
(de que não falamos
nos papos ao telefone
tão animados, apesar de)
— estou me tornando um deles (?!)
revejo fotos antigas
quase sem acreditar
que lá se vão
quinze dezessete
vinte anos
e quando (ainda) sorrio
ao espelho vejo rugas
como se um sismógrafo
animado por van gogh
tivesse traçado sulcos
na tela de minha pele
— sim, estou me tornando um deles
enquanto o tempo dá voltas
em torno se si
# isolado
era pra ser apenas
olhar fotos antigas e
escolher algumas pra
recuperar do ostracismo
das gavetas rumo ao
palco das paredes
porém
nossas caras em close
e falta de foco:
a mãe a mana eu
estamos feias na foto
cada qual
a seu jeito
tentando sobreviver
se escorar ao toque
da pele das feiuras
fragilidades
rachaduras
tentando construir
as cicatrizes
como se costuram
travessias
na foto seguinte
abraço minha mãe
tenho quinze anos
enormes pra ela
: passarinho entregue
à minha carne larga
tentando se firmar
e mirando a câmera
como se a vida estivesse
à frente
dali a três anos
eu me tornaria maior de idade
pra sempre
dali a quatro talvez
porque já fosse maior de idade
meus pais me arrastariam
ao fim do seu casamento
pra testemunhar ou arbitrar ou
tão somente escorar
(será isso então? sempre
escorar(-nos) e tentar
em loop infinito?)
dali a nove anos
eu contrairia hiv
e não duvidei nem
por um segundo
em me escorar
nas duas
(as fragilidades e travessias do pai
foram e são mais difíceis:
esse abraço consegui só
dali a muitos —
se eu voltar pra análise
investigarei por que hesito)
dali a doze anos
eu choraria na praia
sem ninguém
pra me escorar
daquele desamor
dali a vinte
eu quase seria atropelado
por uma moto (num momento
de quase morte tão intenso
que pareceu redefinidor
da vida) e quase
ia me esquecendo
dali a vinte e dois
estou deitado na cama
dentro de um tempo fora
do tempo ou talvez mais dentro
que nunca
olhando fotos antigas
pra refazer os murais
e me perdendo mal escorado
(como se escorar na ausência?)
entre a costura do voo
e o clarão da cicatriz
— Publicados em 07/2020 na Revista Vício Velho (o poema “isolado” integra o livro lagarta chã, a ser publicado em 2023).