Caraminholas sobre Torto Arado
Demorei a ler o Arado. Por coincidência, peguei-o pouco depois de receber a leitura crítica do meu livro de contos (ainda em construção), que expandiu largamente a maneira como escrevo e leio. O duplo impacto — absorver um entendimento mais técnico das estruturas da prosa e vivenciar (não escolho a palavra à toa) o fenômeno que o livro está sendo (nem o gerúndio) — fecundou algumas caraminholas na minha cabeça.
Personagens e cenas são os elementos mais intensos e grandiosos do romance. As figuras humanas não são apenas profundas, mas o são de um tal modo a nos tocar também profundamente. Em parte, nossa conexão com elas acontece porque Itamar nos dá o que precisávamos e queríamos, em termos de quem e como são romanceadas no atual momento histórico brasileiro. Tendemos a considerar este aspecto como extraliterário, mas a costura entre o estritamente literário e seu fora interessa menos que a obra em si: ao mesmo tempo bem urdida e necessária, simbólica, (in)conveniente no bom sentido de quebrar a ausência de um romance como este.
A realização imagética é assombrosa. Desde a já antológica cena inaugural, a descrição dos movimentos interativos entre as personagens, do que acontece, propriamente, quase sempre alcança uma alta voltagem, sustentada na inventividade da situação e equilibrada entre o que se conta e o que imaginamos através das frestas.
Não é um livro perfeito (será que existe?[1]). Fragilidades foram apontadas aqui, ali e acolá, em geral relativas à linguagem que recheia a composição. Sem necessariamente concordar com todas as críticas, acho-as relevantes. A leitura de ficção é sempre subjetiva, e por conseguinte, a percepção de qualidades/problemas de um texto também. Percepções variadas enriquecem a subjetividade de quem já leu ou vai ler a obra, assim como as possibilidades artísticas daquele autor e de todes nós outres.
Embora eu não pretenda fazer exatamente uma crítica literária, vale apontar alguns aspectos menos felizes do romance. Ao lado de passagens especialmente bonitas, circulei trechos onde sobressaíam engenho ou derrapadas narrativas, como uma narradora-personagem agindo como onisciente, afirmando o que se passa na mente de outra personagem (Bibiana sobre o prefeito na cerimônia de jarê, p. ex.); ou repetições em demasia (de variados tipos), especialmente na primeira parte. O registro de Belonísia me pareceu, por vezes, formal demais — por exemplo, usando “haver” como verbo auxiliar em tempos compostos. Para uma personagem do interior que abandonou a escola, soa deslocado.[2]
Torto Arado é maior que suas fraquezas. Não é pouca coisa. Antes dele, enquanto reescrevia meus próprios textos em prosa (todos), reli os contos de Clarice, tentando aprender um cadinho. Alguns, como “A imitação da rosa”, são irretocáveis, outros são irregulares, e uns poucos não fariam grande falta (pronto, falei). Mas, quase sempre, a melhor escritora brasileira de todos os tempos[3] consegue justo isto: um todo cuja qualidade extrapola seus pontos fracos. Inclusive nos romances, como Uma Aprendizagem (meu favorito) ou A paixão segundo G.H. (frequentemente dito sua obra-prima).
Apesar de Clarice, zelosa de seus inalcances, ter escrito que “até cortar os defeitos pode ser perigoso — nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”, às vezes uma empreitada de aprimoramento vale a pena.
Então as caraminholas foram surgindo. Vem comigo: e se no contato com uma obra literária, nós a olharmos não apenas “para trás”, como finalizada, mas tomar/tornar o publicado como um marco inicial, obra viva, passível de ser reelaborada e reelaborada pelo autor — se, quando e até onde quiser? Flexionar a fixação do texto, digamos — a própria expressão já indica que o apego excessivo a uma versão definitiva pode não ser tão saudável, tolhendo possibilidades e multiplicidades artísticas que talvez engrandeçam a obra e nossa relação com ela.
Em muitas artes, diferentes versões de um mesmo objeto convivem numa boa. Qual a melhor versão de Gil para “Aqui e agora”: a primeira, mais colorida, ou a pura voz e violão, trinta anos depois, em Gil Luminoso? A de Nina Simone para “House of the rising sun”: elétrica em Nina sings the blues, ou soturna em Live at the Village Gate? Van Gogh pintou cinco Girassóis. Munch fez quatro versões de O Grito: em óleo, têmpera, pastel e litografia. Na tela original, acrescentou a frase “Só poderia ter sido pintado por um louco”, depois de ter exibido o quadro, como resposta às críticas recebidas[4]. Duas pinturas de Picasso, ambas intituladas Três Músicos, são ao mesmo tempo bem parecidas e bem diferentes. Bob Dylan, que afinal tem um Nobel de literatura na mochila, lançou em 2015 um álbum inteiro com gravações alternativas de sua música mais famosa (e favorita): “Like a Rolling Stone”, feitas na mesma sessão de estúdio da versão original. Qual a letra mais bonita de “Lígia”: a cantada por Tom e Chico ou a de João Gilberto?[5]
Apesar do google e do auxílio informal de amigos, não encontrei muitos exemplos dessa liberdade entre escritores. Murilo Mendes revia incessantemente seus trabalhos. Lembro-me de oficinas de poesia e crítica que frequentei em 2020, nas quais a possibilidade de reelaboração dos textos (bem como reelaboração da leitura de textos alheios), no esteio do diálogo com as/os colegas, foi um baita aprendizado. Talvez este modo de encarar a obra, como algo em permanente mutação, soe menos estranho a poetas — para quem o ordinário pode parecer estranhíssimo, e o inusitado, quase natural. Outro Murilo, o Rubião, também reescrevia sem trégua seus contos. Mas é no ídolo maior do panteão antigo que encontro o caso mais interessante: Machado e seu Quincas Borba.[6]
O romance foi publicado primeiro como folhetim quinzenal, ao longo de cinco anos. Depois, em livro, com significativas diferenças. As razões e o teor das mudanças são específicas (p.ex., os públicos diversos, à época, para os dois formatos), mas essa liberdade, o despudor em eviscerar a própria obra e reconstruí-la, é poderosa ferramenta a nossa disposição para ser usada em variados contextos.
Enviei uma primeira versão desta coluna a alguns escritores, para trocarmos figurinhas — se proponho considerar textos diversos como em processo, como nunca-finalizados, é justo começar pelo meu. Apenas um citou o Quincas, brevemente, dizendo que havia mais de uma versão do romance, mas sem lembrar os detalhes da história, que eu desconhecia completamente. Desde o começo, imaginei que minha caraminhola não seria inédita, mas é tão incomum reelaborar um romance inteiro já publicado, que o exemplo do nome mais canônico de nossa literatura anda largamente esquecido.
E por que não? Tendo o expediente já sido usado até por Machado, o que impede ampliarmos seus horizontes, para além da transposição de um formato (folhetim) para outro (livro), e enxergarmos — escritores (críticos) e leitores — a obra publicada como em construção, por tempo e de modos irrestritos? Desfixar (ou pelo menos debater) o pressuposto de que ao analisar um livro o consideramos pronto, concluído. Aproximar a escrita da performance (como nos exemplos musicais), apta a sua própria reelaboração. Baralhar o tempo e abraçar a possibilidade de N versões subsequentes & simultâneas de um mesmo livro, sem que necessariamente esta ou aquela prevaleça sobre as outras (sensibilidades diversas podem preferir versões diferentes, com seus acertos e erros específicos).
Evidentemente, Itamar faz de sua escrita o que desejar. Pode não estar interessado em revisitar o romance (textos recentes, como o da Revista Época[7], mostram sua habilidade inquieta já produzindo novidades). Ou até concordar que certos aspectos da obra poderiam melhorar, mas preferir mantê-los do exato jeito que estão.
Em paralelo, qualquer escritor pode reescrever suas obras, a ideia não se prende ao Arado. Mas a conjunção muito especial de fatores (em torno) do livro, desde suas qualidades (pelo tamanho e pelo tipo), suas fraquezas, seus próprios abertos, seu alcance único em tempos recentes, para além da bolha literária (carregando consigo vários alcances de dentro), é o que me botou a caraminholar sobre a lindeza que seria ver essa árvore plantada na Chapada Diamantina florescer ainda mais.
Esta, inclusive, é outra qualidade infrequente: nos atiçar a querer mais. Há livros também melhores que a soma de seus pontos cegos, e que simplesmente compreendemos, apreciamos e seguimos em frente. Torto Arado, ao menos a mim, provocou outro olhar, que não se encerra no já realizado, mas se anima com o tanto que vislumbra poder frutificar a partir dele, devaneando subjuntivos: e se? Que delícia seria!
Os caminhos são muitos. Como Machado, podemos pensar em uma versão revista pelo autor e pronto: aprimorada num sentido estrito (e subjetivo). Ou, a exemplo de cantautores e pintores, em versões múltiplas, desierarquizadas, sem preocupações com a tal fixação do texto. Ou, ainda, textos independentes que se agreguem ao existente, em mosaico. O romance, como poucos que conheço, é multiplicável tanto internamente, crescendo trechos, capítulos, alterando seu curso feito rio na cheia; quanto externamente, semeando e irrigando contos, novelas, outro romance até. Cenas de infância pela voz da caçula Domingas. Bibiana longe da terra, quem sabe na voz masculina de Servo: contraponto. O Rio Utinga narrando-se, desde antes de Donana e depois, em prosa encantada por Santa Rita Pescadeira e João Cabral.
A seu favor, Itamar tem alguns trunfos: o fenômeno cultural em pleno curso, seu talento imagético e as características específicas da obra, como a força das personagens e esse caráter expansível, advindo de outro feito raro que alcançou logo na estreia como romancista: ter fundado um manancial, de onde ainda pode nos dar muito a beber, se quiser, e talvez fazer seu livro maior do que já é. Enquanto outros romances possuem um caráter mais fechado em si mesmos, sendo difícil imaginar que deles se ramifiquem procedimentos assim, a Fazenda Água Negra e seu povo têm um potencial enorme de se tornarem um universo.
Enquanto formigo meus próprios dedos reescrevendo prosas e versos como os dois Murilos (romances são imensidades para as quais ainda me falta coragem — ou competência), aceno com carinho a este baiano que chacoalhou nossa literatura e ampliou nosso público:
querido, tem nas mãos seu arado de escritor, sua obra semente — cujas raízes adentram cada vez mais no imaginário brasileiro — e a terra fértil de leitores encantados. Eu, ao menos, adoraria comer mais do que você plantou. Como adubo para multiplicar os frutos e sabores do seu pé de literatura, valei-nos as palavras de Raduan, escolhidas na epígrafe de seu caudal: amor, trabalho, tempo.[8]
[1] Nota de rodapé é chique, né? Segundo a editora/leitora crítica lá do primeiro parágrafo, há uma única obra perfeita na literatura brasileira: Grande Sertão. Não posso corroborar porque aproveito a nota para expor-escondendo: nunca terminei o livro. Mas é uma das metas de 2021. Afinal, segundo um escritor amigo, “a gente só fala português para ser capaz de ler o Grande Sertão: Veredas no original”.
[2] O uso de estruturas cultas da língua por personagens que em tese não as dominam é ponto complexo, inclusive para não se reforçar a exclusão de pessoas e personagens desse terreno. Em artigo sobre a poesia de Claudia Rankine para o Suplemento Pernambuco (nº 179 – janeiro 2021), Stephanie Borges diz que a poeta “desperta uma série de questionamentos sobre como falar de experiências negras sem esquecer que usamos uma linguagem que nos é hostil. Nós disputamos os significados das palavras (…) mas sempre há lembretes de que não somos bem vindas”. Parte do tratamento sintático/lexical no livro pode ser visto como apossamento dessas estruturas (hostis), o que o torna bem vindo. Também pode ser lido como manifestação de características das personagens (p.ex, um desejo de “falar bonito”, em oposição a um beletrismo do autor). Embora, a meu ver, certas construções apontadas não tenham sido tão bem calibradas (ou justificadas narrativamente), entre os diversos modos possíveis de se ler o/um romance, incluem-se os que depurem méritos em elementos da linguagem criticados por outros.
[3] Outra fofoca de rodapé: amigo poeta me diz achar Clarice superestimada. Depois de contar até dez e beber um copo d’água, brinco: afora quem venera o deus antigo Machadão, fãs em Pindorama costumam se agregar em duas seitas literárias: roseanos e clariceanos (Drummond corre por fora, à gauche). Aqui é #teamclarice!
[4] A confirmação de que a frase foi escrita pelo próprio Munch, e não por um terceiro, é recente.
[5] Antes que apontem exagero na comparação de Itamar com Picasso, Clarice, etc., sublinho que a ilustração é, bem, ilustrativa. E ao traçar paralelos, no intuito de caraminholar caminhos por onde uma obra/um artista pode ir, que seja com os grandes, não com os Zé-Eu da vida, ora.
[6] O qual também nunca li — então vocês me perdoem a cara de pau, mas acredito que as ideias apresentadas se sustentam apesar das lacunas no meu currículo.
[7] “Debaixo d’Água”. Época nº 1173 – Gritos contra o silêncio, 11.01.2021
[8] fim/começo: como dito, a caraminhola de se encarar uma obra como em permanente processo é aplicável a qualquer texto — tanto por quem o escreve(u) quanto por quem o lê(u). Façamos isto, pois, com este pretenso ensaio, e para maior diversão, de maneira colaborativa: sintam-se à vontade.