poemas-ponte (do isolamento pra fora)

Depois de algumas prosas pandêmicas e pequenas pulsações poéticas, quero erguer pontes, precariamente e a medo, entre esta alguma coisa em mim que não entendo — ainda mais aqui dentro, em tantos sentidos, durante este isolamento — e (vocês) lá fora:

#

antes a cidade se vestia de ruído

e nalgumas dobras do tecido

podíamos apalpar o silêncio

 

agora a cidade mais silencia

porém nas frestas da mudez coletiva

escorrem intimidades líquidas

 

 

#

sob esse roxo de maio

ao mesmo tempo nuviado

(como dizia a bisa)

e seu contrário

 

tentamos sobreviver

 

 

#

no meio do banho

no meio da pandemia

no meio da punheta

no meio dos trinta

(que já parecem

quarenta)

no meio da náusea

a flor tão frágil

(o poema)

 

 

#

numa tarde perdida

entre dias esquecidos

e noites repetidas

percebo uma aspereza

nova nos pés:

descamam

 

parecem os pés da vó

(de que não falamos

nos papos ao telefone

tão animados, apesar de)

— estou me tornando um deles (?!)

 

revejo fotos antigas

quase sem acreditar

que lá se vão

quinze dezessete

vinte anos

 

e quando (ainda) sorrio

ao espelho vejo rugas

como se um sismógrafo

animado por van gogh

tivesse traçado sulcos

na tela de minha pele

 

— sim, estou me tornando um deles

enquanto o tempo dá voltas

em torno se si

 

 

# isolado

 

era pra ser apenas

olhar fotos antigas e

escolher algumas pra

recuperar do ostracismo

das gavetas rumo ao

palco das paredes

 

porém

 

nossas caras em close

e falta de foco:

a mãe a mana eu

 

estamos feias na foto

cada qual

a seu jeito

tentando sobreviver

se escorar ao toque

da pele das feiuras

fragilidades

rachaduras

tentando construir

as cicatrizes

como se costuram

travessias

 

na foto seguinte

abraço minha mãe

tenho quinze anos

enormes pra ela

: passarinho entregue

à minha carne larga

tentando se firmar

e mirando a câmera

como se a vida estivesse

à frente

 

dali a três anos

eu me tornaria maior de idade

pra sempre

 

dali a quatro talvez

porque já fosse maior de idade

meus pais me arrastariam

ao fim do seu casamento

pra testemunhar ou arbitrar ou

tão somente escorar

(será isso então? sempre

escorar(-nos) e tentar

em loop infinito?)

 

dali a nove anos

eu contrairia hiv

e não duvidei nem

por um segundo

em me escorar

nas duas

(as fragilidades e travessias do pai

foram e são mais difíceis:

esse abraço consegui só

dali a muitos —

se eu voltar pra análise

investigarei por que hesito)

 

dali a doze anos

eu choraria na praia

sem ninguém

pra me escorar

daquele desamor

 

dali a vinte

eu quase seria atropelado

por uma moto (num momento

de quase morte tão intenso

que pareceu redefinidor

da vida) e quase

ia me esquecendo

 

dali a vinte e dois

estou deitado na cama

 

dentro de um tempo fora

do tempo ou talvez mais dentro

que nunca

 

olhando fotos antigas

pra refazer os murais

e me perdendo mal escorado

(como se escorar na ausência?)

entre a costura do voo

e o clarão da cicatriz

 

 

— Publicados em 07/2020 na Revista Vício Velho (o poema “isolado” integra o livro lagarta chã, a ser publicado em 2023).

Livros

lagarta chã

Daí a brisa forte e sadia que vem deste novo livro de Thássio Ferreira, muito felizmente chamado lagarta chã. Algo que responde ao mundo, mas anseia o que não se contenta na resposta – antes convoca, aponta, desdobra.

O que temos aqui é, como nunca deixará de ser necessário, um encantamento múltiplo com o ponto mais chão, a coisa mais chã: das turbinas às lagartas, dos mucos às galáxias, passando pelas casas, as plantas, os poetas, os corpos, as parafernálias que fazem uma vida, muitas vidas.

(Guilherme Gontijo Flores)

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Nunca estivemos no Kansas

Vinte e dois contos que transitam por diversos cenários, relações humanas e estruturas narrativas, construindo uma cartografia de arestas e descaminhos, desde um idílio qualquer onde nunca estivemos — individual e coletivamente — até o presente e além.

Parte dos contos reunidos angariou prêmios como Off-Flip (2019) e Prêmio Cidade de Manaus (2020), foi finalista do Prêmio Sesc (2017) e publicada em veículos como Jornal Rascunho, Revista Garupa e Vício Velho.

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agora (depois)

Em seu terceiro livro, Thássio Ferreira desnovela a linha do tempo de uma história de amor, de trás para frente, em 52 poemas organizados em duas partes: um “agora (depois)” instalado com a separação; e o “agora” anterior, do início do relacionamento até sua crise. Dividindo esses dois tempos, um retrato em prosa do momento fatal em que o barco se desamarra do cais.

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Itinerários

Itinerários, de Thássio Ferreira, vencedor do I Concurso Literário Editora UFPR, em sua linguagem agradável, técnica refinada no uso de rimas internas e externas, ritmos cadenciados, ecos verbais e temáticos, bem como suas aliterações e assonâncias sutis, promovem uma poesia impactante que envolve e encanta.

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Mundinho

Mundinho enamorou-se da selva. Apesar dos avisos, dos interditos, das tentativas do Zé Caboclo. Zé, pescador cheio de brios, não queria o filho no rio, nem nos lagos, nas beias, nem dentro da mata. Mundinho era pra contrariar o apelido: ganhar o mundão. Apanhava de cipó pra ir à escola, não era pra ficar de pavulagem com os moleques, pelas ruas de tijolos, nos barrancos do Envira. A mãe obedecia ao marido, ralhando pra ele tomar jeito, estudar, estudar, não fosse virar homem sem ler nem escrever feito ela e o Zé.

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