Carta-ensaio sobre as entrelinhas

(para Rodrigo Oliveira, a respeito de Carcaça, de Josoaldo Lima Rego): Oi, irmãozinho. Como tá-tu?

Carta-ensaio sobre as entrelinhas

 

(para Rodrigo Oliveira, a respeito de Carcaça, de Josoaldo Lima Rego)

 

 

Oi, irmãozinho.

Como tá-tu? Recentemente reuni alguns poemas curtos sob o título “pequenas pulsações poéticas”, pra minha coluna na Vício Velho (acho que foi antes de te enviar aquele inédito pro concurso de Portugal), e essa ideia tem pulsado bastante na minha mente: a poesia como um tipo de pulsão de vida, em oposição a esses tempos (tão antipoéticos) de tanta morte. Tenho, pois, lido bastante poesia.

O livro mais recente me lembrou você: Carcaça, de Josoaldo Lima Rego. Talvez por ele também ser professor, e por falar muito fortemente, explícita e implicitamente, de geografias. O conceito de lugar é muito presente, há vários poemas que se estruturam em torno de menções espaciais, da percepção (e impressões) de um onde, ou da tradução poética de alguns aspectos específicos. O primeiro poema já é uma espécie de condensação de um mapa-mundi:

 

JAUÁRA ICHÊ

O mundo não acaba em tuas mãos

A borda da dobra é frouxa

Da Anatólia vês o Piauí

Do Pantanal, a Antuérpia

 

Eu já tinha lido outra obra dele, Máquina de Filmar, e gostara mais ou menos, um tanto por sentir não ter compreendido muito bem. Gosto de compreender. Há um tempo atrás admiti esta dificuldade num email a um amigo poeta (cujo livro eu também sentia não estar entendendo lá muito bem, rs): me desapegar da necessidade do entendimento, do sentido. Quanto mais eu leio poesia, mais sinto que essa necessidade excessiva de querer entender, assim completamente, atrapalha um bocado, seja pra apreciar, seja (veja que irônico) pra entender possíveis significados que não estão postos de forma linear, unívoca, mas sim como possibilidades.

Queimei a mufa, então, pra não me aferrar tanto a uma busca de sentidos únicos. Fugir de ler e pensar “Ah, então é isto que ele quis dizer”. Talvez possa dizer que tentei deixar os textos flutuarem, assim como os pedaços de (possíveis) significados. Foi interessante. E acabou me lembrando ainda mais de você: também pode ser bem difícil te entender, né, você sabe.

No caso do livro, pareceu-me até proposital esta falta de clareza, ou falta de sentido(s) fechado(s), digamos. A começar por características formais mais evidentes. Os poemas são no geral bem curtos, alguns parecem mais fragmentos que poemas prontos (alô, Livro do Desassossego?!), quase sem nenhuma pontuação final. Só há ponto final no interior de versos. No fim deles, o vazio, ou pontos de interrogação. Será que abolir a pontuação final, exceto quando ela exprime dúvida, é justamente um jeito de marcar a indefinição? O espaço aberto espelhando um campo aberto dos sentidos, ausência de certezas? Como diz o primeiro verso da obra, que transcrevi lá em cima, “O mundo não acaba em tuas mãos”

Como dizemos tanto hoje em dia (nesses dias surreais do Brasil), até aí tudo bem. O que me desconcertou mais foi o uso perturbadoramente errático das maiúsculas. A poesia de língua portuguesa tem uma relação interessante com elas. Bandeira e nossa querida Sophia sempre usavam maiúscula no início do verso, independente dele começar uma nova frase. Drummond, por outro lado, obedecia à gramática. Atualmente é muito comum privilegiar as minúsculas, ora usando-as exclusivamente, ora reservando as maiúsculas pra casos específicos desvinculados da regra gramatical. Em Carcaça, não consegui identificar um padrão, nem um critério (mesmo que não fosse absoluto). Há poemas integralmente em minúsculas. Versos começando em maiúsculas. E, às vezes, parecem ser usadas após um ponto final que não está lá; ou simplesmente como forma de começar um novo bloco imagético, feito linha de costura atravessando uma peça de tecido que pode ser considerada um todo (o poema), marcando onde um pedaço se diferencia do anterior. Como (divisões de) um mapa. Mas às vezes, nem isto fez sentido pra mim. Um exemplo:

 

CARBONO

alguém ousou

atravessar a rua

tapando os ouvidos

 

O implacável cão

amarrado ao carbono

da cidade

onde os raios do sol

vomitam

 

Por que começar o poema em minúscula e a segunda estrofe em maiúscula? Se os textos podem ser lidos como pequenos mapas, alguns se destinam mais a desestabilizar nosso sentido de direção, nossa expectativa de como um mapa deveria funcionar, e menos a nos orientar (de novo, rumo a algum sentido final, imperativo, de cada texto). Mapas cifrados cujo destino cabe ao leitor terminar de desenhar.

Também no conteúdo, no que se diz, nas imagens que os poemas articulam e encadeiam, e nas que deixam apenas sugeridas, entrevistas, parece haver a possibilidade de sentidos outros, múltiplos, flutuando entre as palavras. Mais até: os poemas são como a carcaça de algo: do sentido que não se pode transmitir propriamente, com exatidão, ou da experiência que não se pode reproduzir. Deste algo, dos significados que não se sabe nomear, das experiências que não se pretende traduzir, só se pode registrar uma moldura a ser preenchida pelo próprio leitor, na ação da leitura. Estamos tão acostumados a encarar um texto como meio para se transmitir uma mensagem, que nos soa estranho quando ele se propõe a ser um esqueleto cuja carne, músculos, sangue e movimento compete a nós mesmos completar.

Um texto se chama “64 Títulos”: cada verso — devidamente numerado — um possível título de poema (ou mesmo livro) que cabe a nós, leitores, inventar. Veja este outro:

 

A conversa

refeita em ruído

depois a própria pele

esfacelada nos

muros

 

Enfim

o pouco que resta

pode parecer sonho

ou algo

impenetrável

 

Borra escrita

em lama

 

A conversa das coisas com as coisas, da gente com o mundo, refeita no ruído impreciso do poema, esse pouco que resta como suficiente a uma nova conversa, agora conosco, que pode parecer sonho, algo impenetrável, (ou) borra escrita em lama feito oráculo pra extrairmos dos signos escritos o sentido que nos falar mais alto.

Logo antes de ler o Carcaça, irmãozinho, li as teses de Piglia sobre o (bom) conto sempre narrar duas histórias: uma visível e outra secreta, construída com os subentendidos entremeados na materialidade expressa da primeira. Os poemas do Josoaldo também são assim. Em alguns, pressente-se tão fortemente alguma outra conversa por trás da que o poema materializa, mas ao mesmo tempo esta conversa pressentida é tão elíptica, que o poema/a carcaça pode na verdade encerrar diversas histórias secretas. Como todo oráculo. Aliás, nesta perspectiva, repetidas referências à Grécia e suas histórias (que também nos chegam como eco, como textos vazados de ausências do que se perdeu) funcionam como recurso a mais de construção desta proposta de diálogo, ao longo do tempo, entre as palavras escritas e nós, que/quando as lemos.

Foi divertido, Rodrigo, reconhecer quais poemas conversariam mais contigo, de acordo com as histórias visíveis (suas carcaças de palavras, as linhas traçadas do mapa) que sei te chamarem mais atenção: os que falam dos interiores daqui, das gentes daqui, dos bichos daqui. A mim, a voz mais constante a atravessar e emergir das páginas cantava um quê de ruína, ecoando o título do livro. Mas a tua companhia, estranhamente nascida justamente da ausência, da saudade, trouxe um pouco de dengo aos textos mais rascantes, às entrelinhas cujos silêncios guardavam maior perigo.

Oxalá esta carta-ensaio, com suas histórias entrevistas, com os versos que não transcrevi, também possa te fazer um pouco de companhia, feito um outro jeito de conversar nessa distância atlântica. Te deixo (por enquanto) com mais um poema do livro, que sintetiza as incompreensões e possibilidades de que falei e nos desafia a seguir mapeando o que não se esgota no que escrevemos/lemos.

 

ENTREVERO

O ranger de dentes

é pouco

porque o susto

não acabou

Resta a fronteira

Pedaço de arame farpado

enroscado na cara

 

 

Te amo, irmãozinho.

 

 

— Publicado em 06/2020 na Revista Vício Velho.

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