Pequenas confissões (em linha reta)
— Publicado na Revista Desenredos nº 39 (disponível também em PDF)
Como daquela vez em que eu passava pela rua, ouvi: Cobertor… virei-me: um homem, em situação de rua, como se diz. Mas segui meu rumo, apesar da toalha e do lençol fino na mochila, voltando de viagem, e doeu, e dói hoje feito uma lama suja sobre a pele queimando ao sol, arrancando alguns micropedaços de mim enquanto racha e se esfarela, porque talvez por medo, preguiça, a insensibilidade que vai se entranhando infecciosamente, ou qualquer outro não que deveria ter sido um sim, eu segui, sem olhar pra trás nem uma segunda vez aquele alguém que certamente doía mais que eu.
Ou quando noutra rua: vi a senhorinha, com enorme dificuldade, agarrando a mão a um fino tronco de árvore, a fragilidade daquela velhice animal, carnalmente animal, tentando escorar-se na fragilidade de uma juventude vegetal. A árvore vergou um tanto, farfalhando-se toda, e a senhora sob o sol. Tentava atravessar à outra calçada, e temi que não conseguisse, mas não corri pra ajudá-la, acho até que diminuí um pouco o passo, na covarde esperança de que tudo se resolvesse antes que eu chegasse tão perto que minha covardia doesse como um arpão, e outro alguém, na direção oposta, tão oposta a mim, chegou-se a ela e lhe ajudou, pra alívio e redenção de todos nós.
Como no ônibus quente, que havia demorado tanto a passar, um pastor com a expressão séria dos sérios, ao fim de uma longa noite de domingo, pôs-se em pregação, e altissonei minha voz e lhe disse: Senhor, com respeito e licença de o interromper, tenho certeza que o senhor é um homem de bem e eu também sou, e entendo seu desejo de dar testemunho de sua fé, mas não aqui, onde outras pessoas, todas de bem, não estão de acordo em ouvir e busquei falar com cortesia e humildade firmes e ele respondeu: Sim e sentou-se. Ou será que: imaginei isso e apenas tentei dormir deixando o homem pregar, talvez por menos tempo do que eu esperava, certo talvez — talvez não — de ser essa a atitude mais generosa? Certo mesmo, sem talvez, é que: não lembro.
Também: quando numa tarde sufocante (por fora, por dentro, pelos entremeios), naquele cartório cheirando a mofo, um dos atendentes, tão jovem (tão equivocado, tão arrogante), em diálogo cujo início eu (talvez felizmente) não presenciara, lascou ao colega que: As meninas se dizem feministas, mas vai você se dizer machista; aí não pode!, olhando-me em seguida, entre desafiador e talvez suplicante: desamparado. Pensei em replicar (eu deveria, porra!), abraçar seu desamparo e desafio com firmeza, dizendo: Não, explicando que: Não são conceitos equivalentes, né, parça, feminismo é sobre igualdade e machismo é sobre oprimir, ora porra!, mas calei-me, fingindo olhar o celular até que meu documento estivesse pronto, sufocado em tanta fraqueza e inação.
Como d’outra feita, naquele hipermercado repleto de vazios em promoção, o rapaz mais velho: humilhando o menino em voz sarcástica: Vai chamar a mamãe?, e a mulher ao lado espezinhou: Seja macho! Dois adultos e uma só brutalidade alinhados frente à criança, frente a mim, que poderia ter me insurgido, intervindo, lutado. Mas: nada (ao som do carrinho de compras que se afasta).
E quando a lama soterrou a cidade, meu amigo foi até lá gravar as notícias pro jornal e no dia mesmo em que retornou estava tão exaurido, tão em prantos. Eu não quis saber: exigi sua presença no meu aniversário. Ele foi. E vi nos olhos dele: a tragédia. Em vez de abraçá-lo, dizer: Chora, chora sim e vai pra casa, amigo eu fingi (que não vira nada, que não percebera aquela dor funda feito um vácuo), odiando-lhe por dentro: que deixasse a tragédia fora da minha festa.
E tanto mais eu fiz, sozinho, sem ninguém (nem deus, acho) por testemunha: nem ouso confessar.